Prefácio O que é um prefácio? No sentido descritivo, costuma ser uma apresentação da obra e do autor, enunciando os seus méritos e permitindo ao leitor entrever o percurso que o livro lhe apresenta. Nos melhores casos, o prefácio permite ao leitor situar o texto que se segue no seu espaço literário ou cientÃfico, filiá-lo em determinada tradição, ou destacar as suas contribuiçÃμes originais. Mas, porque feito "a pedido" e sobre quem não nos é indiferente, mais do que propriamente uma análise crÃtica do texto, o prefácio é também um espaço afectivo, onde não há lugar para a neutralidade. Prefaciar alguém é, sem dÃovida, recomendá-la e, nesse sentido, quem prefacia toma um pouco como sua a coisa que anuncia. Como consequÃancia dos pressupostos anteriores, o prefácio é também um acto de legitimação do texto: anunciando-lhe as qualidades e recomendando-o, o prefaciador assume-se como alguém com legitimidade para o fazer. E, buscando-se no prefaciador a "chancela de qualidade" da obra, o prefaciador afinal... chancela-se a si mesmo! Ora, assumindo eu sem dificuldades a minha relação intelectual e emotiva com o trabalho da Doutora Raquel Matos, que tive o privilégio de orientar no seu doutoramento, nem me sinto confortável neste papel hierárquico, nem ele faz sentido no contexto especÃfico deste trabalho. Porque o mesmo traduz um percurso investigativo pelos caminhos da criminalidade feminina que não havia ainda sido traçado no quadro da Psicologia da Justiça em Portugal (ainda que outras contribuiçÃμes relevantes sobre o tema existissem já no campo da Antropologia e do Direito), porque o trabalho aqui apresentado releva, essencialmente, da autonomia e espÃrito crÃtico da autora, porque os prÃ3prios princÃpios epistemolÃ3gicos nele incorporados recusam tal noção de autoridade hierárquica. Apresento, pois, o trabalho da Doutora Raquel Matos, não como especialista que avaliza a sua qualidade, mas essencialmente como leitora e interlocutora seduzida e desafiada pelas suas propostas, pelos seus resultados e pelas questÃμes que nos levanta. E é esse o convite que endereço ao leitor: que se deixe interrogar e incomodar pelo que vai ler de seguida. Porque, tal como este prefácio, o trabalho que aqui se apresenta, sendo rigoroso, não é também um objecto neutro, mais prÃ3prio do campo das ciÃancias ditas hard do que do territÃ3rio mÃ3vel e ambÃguo das relaçÃμes humanas, do poder, do género, da transgressão e da violÃancia. Este é um percurso, simultaneamente teÃ3rico e empÃrico, pela criminalidade juvenil feminina, que recusa olhares estereotipados sobre a mulher criminosa como "vÃtima" ou como "perversa", procurando percebÃa-la e ao sentido que dá aos seus actos, na variedade de razÃμes, motivos e trajectos que escapam a tais leituras lineares. Reconhecendo a sua variedade e, evitando a tentação "psi" da catalogação, dos tipos e dos perfis, explorando a multiplicidade das relaçÃμes com o crime e dos papéis que este cumpre nas vidas destas jovens mulheres. Admitindo que o crime é, também para algumas mulheres (como a criminologia já vai reconhecendo ser para alguns homens), gozo, adrenalina, excitação. Mas também escape a relaçÃμes abusivas ou, pelo contrário, mais uma expressão da dominação de género. Ou, simplesmente, sobrevivÃancia, negÃ3cio, ou estilo de vida. Ao explorar esta diversidade, este trabalho desafia, como disse, a tradição da psicologia positivista de encaixar as mulheres, especialmente as que desafiam os papéis sociais prescritos, em padrÃμes estanques e de as rotular. Mas desafia também a tentação de alguns feminismos: a convocação de um imaginário de vitimização como denominador comum da condição feminina. As jovens mulheres que nos são aqui apresentadas decidem, fazem escolhas, arrependem-se e decidem de novo. Por vezes, é certo, no contexto de relaçÃμes violentas e abusivas. Frequentemente no quadro de condiçÃμes de vida adversas. Sempre, movendo-se em circunstâncias que não foram por si livremente escolhidas. Mas, no entanto, como diria Galileu, movendo-se... Este relato emancipatÃ3rio e simultaneamente compreensivo não nos oferece uma leitura simplista da criminalidade feminina, nem argumentos ideolÃ3gicos "prontos a usar", quer sejam de desculpabilização, quer de demonização destas mulheres. Representa-as - contra a tradição dominante da psicologia e da criminologia - como "iguais a nÃ3s", "Vidas raras de mulheres comuns". Esse constitui, entre muitos outros que deixo ao leitor o privilégio de descobrir, o seu mérito maior. CARLA MACHADO Braga, Universidade do Minho Dezembro de 2007 Parte I Dar sentido à criminalidade feminina: SignificaçÃμes externas Parte II dar sentido à criminalidade feminina: SignificaçÃμes vividas
ISBN-10: 9789724033921 ISBN-13: 9789724033921 Páginas: 368 Autor: Raquel Matos