Esta edição de Vidas secas tem grande importância simbólica, por duas razões: torna acessível a obra de Graciliano Ramos aos leitores das camadas populares da sociedade e, em decorrência disso, coloca-a no lugar que lhe é de direito, ou seja, o lugar de patrimônio cultural a ser apropriado na formação de leitores críticos e conscientes.
Este romance tem uma força imanente inesgotável, na medida em que inesgotável é também o processo social brasileiro em que a narrativa é ambientada, bem como a luta pela vida digna no seio desse processo. Fabiano, Sinha Vitória e os dois meninos, mais o papagaio, a cachorrinha Baleia e Seu Tomás da Bolandeira, são personagens extremamente humanos e humanizados pelo narrador em terceira pessoa, cuja presença contamina e se deixa contaminar pelas vozes sociais representadas no romance, evidenciando certa sensação de inadequação das partes ao mundo narrado.
Assim, configura-se com essa iniciativa uma oportunidade de acesso a um dos textos mais emblemáticos da literatura brasileira, uma narração que confirma a convicção de Graciliano Ramos acerca da função contra-hegemônica da arte literária. “A palavra escrita é uma arma de dois gumes”, escreveu ele em 1947. Para Antonio Candido, esse romance “estabelece e analisa os vínculos brutais entre homem e natureza, no Nordeste árido.”
A Expressão Popular inclui nesta edição dois indispensáveis estudos da obra de Graciliano, de autoria dos saudosos mestres Hermenegildo Bastos e Zenir Campos Reis. O primeiro, centrado no capítulo “Sinha Vitória”, mas não apenas nele, analisa a resistência das personagens ao viver uma “situação extrema sem se deixar reduzir na sua humanidade”, buscando formas de superar a vida de privações sob os signos do medo e do desejo. O segundo faz acurada análise da narrativa – em especial do capítulo “Baleia” – colocando em perspectiva suas implicações éticas e estéticas, evidenciando a “tensão entre a fala da utopia e o realismo crítico.”
O leitor notará que o livro traz, nas notas de pé de página, um glossário de expressões regionais e de esclarecimento de alguns termos. Esse recurso, além de clarear significados, tem também a função de promover a integração das diversas culturas pelas quais a obra deverá circular.
Maria Izabel Brunacci – Professora de literatura brasileira