A palavra “travessia” deflagra algumas possibilidades instigantes de sentido: se, por um lado, designa o ato ou efeito de atravessar uma região de ponta a ponta, associando-se às ideias de traspassamento, cruzamento e deslocamento, indica também uma viagem pelo marou através de uma grande extensão de terra. Concerne, ainda, ao termo “travessão”, que, no português lusitano, é um qualificativo usado para caracterizar o vento contrário e forte, que desafia as embarcações. Para não mencionar o significado, no âmbito do regionalismo do norte e do centro-oeste brasileiros, de uma “espécie de recife dividido em várias seções, que se estende de uma a outra margem do rio, formando canais”.
Travessias imaginárias é um livro que condiz com todas essas rotas semânticas. Voltado para reflexões
matizadas sobre a multiplicidade de vias que se entrecruzam na literatura contemporânea de diferentes
nações de língua portuguesa, ele reúne ensaios de pensadores brasileiros, africanos e portugueses, nos
quais o conceito de fronteira se flexibiliza, abrindo-se às interseções e aos enlaces culturais entre países e
continentes. Em movimentos não determinados pelas regras cristalizadas de navegação, são textos que se
desviam de trajetos previsíveis e desafiam, com novos ventos e canais, os lugares-comuns do sistema literário pautado em nacionalidades fixas.
Aqui, as literaturas luso-afro-brasileiras surgem como uma constelação, e as identidades se pluralizam em distintas singularidades, sempre em relação umas com as outras. Escritores e escritoras de vários estilos, gerações e vieses criativos compõem o repertório dos nomes contemplados nos ensaios. De Portugal a Cabo Verde, passando por Brasil, Moçambique e Angola, uma riquíssima rede literária se configura ao longo das páginas.
Temas como autoficção, espaços (auto)biográficos, identidades compósitas, experiências de diáspora e
retorno, subjetividades transversas, dilemas da nacionalidade, trânsitos e errâncias, novos cânones literá-
rios, experimentos ficcionais, itinerários espirituais e movimentos coletivos, narrativas da oralidade, ficção científica, escritas das margens e do “mundo imaginal”, modalidades alternativas de romance de formação (ou aprendizagem), colonização/descolonização, tudo isso atravessa os dez textos que integram o volume, trazendo à tona importantes questionamentos e leituras críticas que contribuem para a reconfiguração do mapa das confluências e diferenças literário-culturais de língua portuguesa.
Todos são ensaios fluidos, porosos, que fazem jus – em sua própria composição – às ideias de travessia,
trânsito, transversalidade e transe criativo. Sem pontos estanques, sem cristalizações.
O resultado só poderia ser este: um livro vigoroso que, ao aliar reflexão crítica, consciência histórica e
inventividade, confere às travessias (reais e imaginárias) uma dimensão não apenas geográfica, mas também cultural e política, evidenciando que as literaturas de língua portuguesa disseminadas em diversas partes do mundo também podem confluir em um espaço multifacetado, feito de afinidades, diferenças e contaminações recíprocas.
Maria Esther Maciel