Como podemos comparar um homem que deixou de ser escritor para se dedicar ao ofício de mecânico com uma mulher que viaja em um trem de Berlim para Munique enquanto observa outra passageira comer um ovo, e ainda, com uma menina que não aceita o fato de não ser notada por um colega de classe? Como esses e outros personagens tão diversos podem confluir?
Aparentemente, não há nada que nos faça pensar que histórias tão banais possam se interligar, mas, nos dez textos de Mulher feita e outros contos, Marilene Felinto usa a simplicidade cotidiana para mostrar ao leitor que a complexidade da vida está ligada de modo íntimo ao ordinário.
A certa altura, uma senhora se surpreende ao ser questionada por uma jovem a respeito de formigas tanajuras servidas como iguarias no interior do país. Aquela pergunta tão singela, sobre algo tão prosaico, recria “na memória da velha senhora o alarido de crianças e adultos, a gritaria, a correria alegre de gente abatendo com redes finas e pedaços de pano as tanajuras que esvoaçavam baixo, voando e revoando em nuvens, enxames pretos, cheias de asas, sobre as cabeças das pessoas”. De uma conversa quase retórica em uma mesa de café da manhã, Marilene Felinto revolve áreas há muito desativadas da memória social, apresenta um choque de gerações e, consequentemente, carrega o leitor ao mais profundo dos Brasis.
Nesta volta da consagrada autora de As mulheres de Tijucopapo ao conto, as confluências e separações acontecem ao acaso, de forma leve, mas impactante. O leitor que mergulhar nesse microcosmo sairá dele com a sensação de que se encontrou com um amigo, com a infância, ou a própria velhice, como se um pouco de cada um de nós estivesse descrito nas linhas desse livro.
Mulher feita e outros contos é uma reunião desse tipo de acontecimento, com personagens majoritariamente femininas que nos permitem refletir sobre a inconstância dos dias, como se fosse “um comentário qualquer desses, do lugar da nossa arrogância inútil” que nos faz rir “feito adolescentes sem compromisso”. São as linhas que costuram os nossos dias, os traços que, como desenhos imperfeitos, atingem a beleza que buscamos no comum.