O romance Lucinde (1799), de Friedrich Schlegel, representa a primeira tentativa ambiciosa de transpor a teoria do romance para a práxis. Em um famoso fragmento da Athenäum, Schlegel equipara a Revolução Francesa, a Doutrina-da-Ciência, de Fichte, e o Wilhelm Meister, de Goethe.
Ele entendia a revolução em um sentido mais amplo, como uma progressão permanente, a qual deveria constantemente revolucionar a si mesma. A tarefa do romance romântico consistia em unificar todos os elementos dessa revolução, ampliando-a, através de sua constituição complexa e autorreflexiva, de um modo duradouro no futuro.
De certa forma, Lucinde é um dos documentos mais significativos da modernidade estética e filosófica. Mas é também o documento de um desenvolvimento revolucionário da relação entre os gêneros, e da convivência e reflexão comuns entre espíritos livres.
Mesmo antes de seu romance, Schlegel já se encontrava entre os primeiros defensores da igualdade intelectual entre mulheres e homens, os quais reivindicavam, ao mesmo tempo, novas formas de comunhão entre eles. O que Lucinderepresenta artisticamente, e coloca em discussão de uma forma poética, que foi hostilizada e muitas vezes contestada pelos contemporâneos, é a experiência vivida em Iena na residência comunitária dos irmãos Friedrich e August Wilhelm, Dorothea, Caroline e outros.
Assim, repensar a história, a cultura, a poesia e a filosofia da mulher significava não apenas deduzir uma conclusão ética a partir do princípio iluminista da igualdade de todos os seres humanos, mas possuir uma atitude subversiva em relação ao conhecimento estabelecido no seu todo.
A desestabilização das relações através da ruptura com as supostas oposições entre os sexos era programática: Lucinde pertence a uma série de tentativas, por parte de Schlegel, de colocar sistematicamente em questão uma forma de pensamento que se orientava de acordo com as dicotomias tradicionais.
Se não é mais simplesmente possível relacionar a mulher ao âmbito da natureza, e o homem ao âmbito do espírito, talvez seja porque a própria dicotomia entre natureza e espírito é falsa, e que, possivelmente, a natureza seja tão espiritual, quanto o espírito natural. Em um sentido empático e romântico, talvez a arte fosse o lugar no qual dicotomias como natureza e espírito, mulher e homem devessem ser suprimidas, com vista à sua convivência comum, preservando aberto o conceito de ser humano.
Até hoje esse pensamento não perdeu nada de sua força explosiva e revolucionária.
CHRISTIAN BENNE
Professor de Literatura Europeia e História das Ideias na Universidade de Copenhague e Presidente da Friedrich Schlegel-Gesellschaft