Com uma voz próxima das memórias de infância e um estilo entre a poesia, a prosa ficcional e a dramaturgia, Cláudia Lucas Chéu narra fragmentos de uma infância num ambiente violento e miserável, entre um registo narrativo autobiográfico e poético. Quando relê o que escreveu, a autora fica assombrada pela possibilidade de "ter deixado o rabo à mostra" nas páginas de Confissão.
Trecho do livro:
Na casa onde vivíamos,
as paredes grossas estavam cobertas por uma película de bolor e das inúmeras fendas saíam pequenos tufos de ervas,
dando-lhes a aparência de jardim vertical abandalhado.
No interior, fazia tanto frio no Inverno
que soltávamos vapor pela boca ao falarmos durante o jantar. Nunca tirávamos os casacos dentro de casa,
e era um verdadeiro suplício nos dias de banho ter de trocar de roupa. É um exagero chamar casa a duas divisões frigoríficas,
mais um género de casa de banho inventada. Não se podia dar mais de quatro passos sem embater na bancada da cozinha.
A casa de banho, medida num generoso passo e meio de criança, continha um lavatório e, por cima deste,
um espelho hexagonal sem moldura, enferrujado nos cantos, mais uma retrete branca com um tampo preto de plástico.
A divisão sanitária improvisada encontrava-se separada da cozinha pela cortina translúcida de nylon branca, suspensa por argolas no varão, ambos em plástico também. Eu gostava daquela casa.
Só tive noção de que não era adequada às nossas necessidades por ver e ouvir o choro regular da mãe,
num queixume de insolúvel desgraça.
O meu nome é Claudia, sem acento,
graças à revista de decoração homónima que a mãe compra todos os meses na papelaria.
É uma publicação importada do Brasil.
Apesar de ser cara e de não termos dinheiro de sobra nem uma casa que se possa decorar
nem a mãe vontade ou gosto em fazê-lo, parece dar-lhe prazer folhear a revista com a mente ensopada em ansiolíticos.
Fá-la mergulhar no lar ideal.
Nos anos 70, década em que nasci, a Claudia era um sucesso em Portugal.
Quanto mais distantes da realidade de beleza e perfeição no lar nos encontrássemos, mais sonho parecia trazer-nos.
Chamam-me Claudia e durmo num divã na cozinha.
A nossa casa só tem duas divisões e meia — sala, cozinha e o wc mínimo. O pai e a mãe dormem na sala no sofá-cama, que foi antes da tia Luísa,
a irmã mais velha da mãe,
porque são dois e precisam de mais espaço,
e eu fico no divã — sou pequena, caibo perfeitamente. Durmo com a cabeça mesmo rente à porta do frigorífico. A cozinha não tem largura suficiente,
teve de colocar-se o divã com os pés voltados para a porta,
o que, segundo a mãe, “dá pouca sorte”. Por sorte, não sou supersticiosa. Era isso ou dormir com a cabeça encostada à porta da rua,
mas por estar mal isolada sente-se o frio e o vento vindos de fora.
Ficar com a cabeça junto ao frigorífico tornou-se a única possibilidade. Às vezes, acordo de noite quando o motor muda de frequência.
Também desperto no escuro por outro motivo.
Não interessa, agora.
De resto, não me queixo — dorme-se bem no divã.
Quando nasci, a mãe ficou doente da cabeça.
Apesar dos medicamentos que avia na farmácia, continua a chorar bastante. Digo-lhe que um dia vai passar e vai tornar-se alegre.
Acredito que sim, ninguém pode ser triste para sempre.
A mãe só trabalha três horas por dia, não consegue concentrar-se mais. Limpa os escritórios da direcção da Junta Autónoma de Estradas
— sacode o pó, despeja os caixotes de lixo
e aspira quilómetros de corredores alcatifados. Às vezes leva-me com ela mas é raro.
Fico com a tia Victória numa casa a sério, com várias divisões muito asseadas.
O part-time da mãe é à tarde, depois dos directores da empresa saírem, e eu só tenho aulas de manhã; a mãe podia levar-me sempre consigo, porém diz que lhe atrapalho o serviço.
Nos escritórios há computadores e máquinas de escrever, posso brincar às escritoras.
Escrever num caderno em casa da tia Vitória não tem graça.
Como não há mais ninguém no escritório, tirando o pessoal da limpeza, brinco no gabinete presidencial onde está a
máquina de escrever com cinco pisos,
e ponho-me a dactilografar histórias inventadas com a promessa de não estragar as teclas.
A mãe é a melhor da empresa a limpar,
por isso é que foi promovida à área presidencial.
Queriam a melhor funcionária para limpar o gabinete da Presidência.
Tenho orgulho na mãe,
pena não cuidar tão bem da nossa casa como dos escritórios dos engenheiros e doutores.