Há aqui uma mulher desvestida em múltiplos trajes. Há aquela que adora desagradar mas deplora que a originalidade a afaste dos homens. Há esta que, malgrado tudo, não abdica da sua maldição singular. Há também a pantera enjaulada (a bárbara da charneca), cujos uivos morrem asfixiados na voz. E ainda outras mais, com destaque para aquela que cumpre permanentemente o luto, pelo irmão ou por si mesma e, neste caso, apenas por ter nascido.
O fluxo destas prosas (ficcionais e autobiográficas) que, dos contos, atravessa as cartas para derramar-se no diário (derradeiro ato de Florbela) – é a pretendida nudez diante de um espelho, afinal ingrato, pois que a despe ainda em outra e outra, desconsolo fatal para quem, por fim, se buscava una, muito embora se tivesse encenado em hidra de mil rostos, em face mutável do eterno feminino. Trancada no seu palco (na sua cela de sóror, no desterro em que foi se emparedando, na solidão carcerária à imagem do casulo, da urna, do útero primevo), Florbela exibe agora, pateticamente, sua tragédia pessoal, que (antes) ficara travestida no jogo das personagens de que (então) se investia nas suas produções.
Delta da fusão definitiva da arte e da vida, o diário as amalgama (de tal forma) que acaba por se dar a ler (nas síncopes dos seus pulsantes fragmentos) como uma vibrátil cartografia remissiva e fantasmática de tudo quanto escreveu, expondo o corpo (a caligrafia) de todos os textos. Ondulam-se nele os motivos da sua poética e da sua narrativa: a nostalgia de um mundo aquém da vida, a perscrutação lírica, a confiança na Senhora Dona Morte, o louvor à instabilidade dos sentimentos, a glória de compreensão dos seres inanimados, o desafio à sorte sinistra, a melancolia dolorosa, a espera do Prince Charmant, a defesa do suicídio, a intuição oracular, o panteísmo, a aura saturnina, a revolta do interdito, o cumprimento da pena de ter nascido, a introspecção impressionista, a visão desencantada, os vasos comunicantes com o universo, o litígio com o social, o sensualismo sedutor, a apreensão do circundante enquanto cambiantes da alma, o monólogo com a solidão, o envolvimento cósmico, o fazer sala no mundo.
O leitor encontra aqui os contos “Carta da Herdade”, “À margem dum soneto”, “O regresso do filho”, “O aviador”, “Os mortos não voltam”, “O resto é perfume”, “O inventor” e “O sobrenatural”: aqueles dedicados ao feminino, à província alentejana e à morte (onde o fantástico faz a sua aparição na prosa de Florbela). Catorze peças da sua correspondência familiar buscam dar a conhecer ao leitor a relação epistolar de Florbela com o pai, a madrasta, o irmão, o namorado, os maridos, os cunhados. Dezoito outras peças indicam o seu contato com o mundo intelectual português de então, dentre as quais se ressaltam as interlocuções com Américo Durão e com Raul Proença.
A publicação do diário que, intermitentemente, Florbela escreve durante 1930 se faz no contexto de todas as outras missivas por ela endereçadas neste último ano da sua existência, a fim de que essas confissões possam ser compreendidas também à luz dos mais triviais acontecimentos correntes. Assim, convivem, ao lado de deambulações pungentes sobre a sua vida (inscritas tanto no diário quanto nas 24 cartas a Guido Battelli – o futuro editor das suas obras póstumas), um postal em francês ao seu médico, bilhetes de envio de coisas usadas à família do seu afilhado, cartas brincalhonas em “alentejanês” para o seu amigo de infância, notícias sobre a sua obra ao amigo jornalista, e a carta à amiga que virá para celebrar o seu aniversário... e o seu funeral. Tudo em afinado desconcerto.
Maria Lúcia Dal Farra