Breve e extraordinariamente contundente, A honra perdida de Katharina Blum, trata dos mecanismos de difamação e violência psicológica a que estão submetidos cidadãos comuns mesmo em democracias estabelecidas como a Alemanha Ocidental dos anos 1970. Escrito nessa época (1974), é um relato seco que, se nunca perdeu fôlego, ganha novas dimensões com o atual domínio dos meios de comunicação digitais, em particular o fenômeno das fake news. Sua atualidade e precisão são um desdobramento coerente da obra do autor, Heinrich Böll (1917-1985), prêmio Nobel de Literatura de 1972 e dono de uma percepção crítica e impiedosa de seu tempo.
Katharina Blum é uma jovem que vive de serviços domésticos, numa rotina organizada e sem sobressaltos. Conhece um homem numa festa de carnaval e passa a noite com ele em sua casa. A polícia a procura no dia seguinte para interrogá-la, uma vez que o recém-conhecido, chamado Ludwig Götten, é suspeito de vários crimes. O caso adquire notoriedade e passa a ser um filão rentável para um diário sensacionalista identificado no livro como O JORNAL, disposto a “provar” que Katharina é cúmplice de Götten. Sua vida é escrutinada e virada ao avesso para o deleite de uma parte da opinião pública. Suspeitas, depoimentos mal-intencionados e mentiras servem para construir (ou destruir) uma personalidade tida como culpada. Katharina é acusada de abandonar seus pais idosos, ser sexualmente promíscua, ter simpatias esquerdistas, esconder uma riqueza de origem obscura e fazer “estranhos” passeios noturnos de carro. A pressão sobre Katharina leva a um desenlace trágico, revelado já nas primeiras páginas do livro.
A trama tem relação direta com um episódio da vida do autor, que havia sustentado uma polêmica com o jornal sensacionalista Bild, o mais lido do país. Na abertura do livro, Böll subverte ironicamente a tradicional declaração de que o enredo e os personagens são fictícios acrescentando: “Se, em descrições de certas práticas jornalísticas, surgirem semelhanças com as do jornal Bild, isso não se deu por acaso ou premeditação; foi, isso sim, inevitável.” O escritor, que pautou sua vida pela defesa dos direitos humanos e por uma análise quase clínica do passado da Alemanha, havia se engajado por um julgamento justo – isto é, que obedecesse às garantias fundamentais do estado de direito – dos líderes da organização terrorista Fração do Exército Vermelho (conhecida como Grupo Baader- Meinhof) diante de acusações sem provas publicadas na imprensa. Uma campanha difamatória foi lançada pelo Bild contra Böll, qualificado de defensor de terroristas – e seguiu-se uma revolta de leitores que incluiu ameaças de morte.
A honra perdida de Katharina Blum foi publicado originalmente pela revista Der Spiegel, a mais conceituada da Alemanha, não sem algum desentendimento com o autor. No ano seguinte, foi lançada a versão cinematográfica do livro, dirigida por Margarethe von Trotta e Volker Schlöndorff, que mais tarde realizaria a versão de O tambor, de Günter Grass. Böll era um dos escritores mais lidos do país, e tanto o livro como o filme alcançaram ampla repercussão dentro e fora da Alemanha.
Böll e Grass (Nobel de 1999) são tidos como os grandes nomes da literatura alemã do pós-guerra. Ambos publicaram seus primeiros livros entre o fim dos anos 1940 e inicio dos 1950, em reação à produção literária da época, marcada por certa condescendência com o passado nazista. As obras da nova leva de escritores abrangiam desde a sobrevivência das ruínas do pós-guerra (qualificadas pejorativamente de “literatura dos escombros”) até o acompanhamento do gradual “milagre” econômico do período de reconstrução do país, com todas as mudanças de valores e crises morais do período. Böll, em particular, adotou uma abordagem e um estilo realistas, ainda que embebidos de ironia. Ao lado de Grass e de nomes respeitados como Martin Walser e Hans Magnus Enzensberger, Böll integrou o Grupo 47, uma associação de escritores que decidiram lutar por uma sociedade pacífica, democrática, socialmente justa e guardiã da liberdade de expressão.
Böll sentiu na pele as duras transformações da Alemanha no século XX. Nascido em Colônia, foi convocado para o Exército em 1938. Lutou na frente russa, entre outras. Foi ferido, desertou e tornou-se prisioneiro de guerra, experiência que resumiu como “o destino amedrontador de ser um soldado e ter que desejar a derrota na guerra”. De volta a Colônia, começou a publicar regularmente em 1947. Destacaram-se Pontos de vista de um palhaço (1953), grande sucesso de público; Bilhar às nove e meia (1959) e Retrato de grupo com uma dama (1971), um panorama da Alemanha da Segunda Guerra Mundial até os anos 1970, citado como o livro que coroou sua carreira no texto que justificou seu prêmio Nobel. Eterno militante, Böll hospedou o escritor soviético exilado Aleksandr Soljenítsyn e foi presidente do Pen Club, comunidade internacional de escritores. A Fundação Heinrich Böll, que atua em mais de 100 países, incluindo o Brasil, pretende defender os direitos humanos e as causas ambientais.
A edição da CARAMBAIA, lançada pelo selo Ilimitada, tem tradução de Sibele Paulino e posfácio de Paulo Soethe, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A capa, desenhada por Bárbara Abbês, traz uma imagem que pode ser tanto o alvo de uma arma de fogo como o visor de uma câmera fotográfica, em referência à violência que engloba a atividade da polícia, da justiça, da imprensa e da própria protagonista.